sexta-feira, 26 de junho de 2009

Sobre o aborrecimento.

Um dia de muita chuva. Passava tentando não me aborrecer com o trânsito, me aborrece começar o dia já assim, aborrecida. Respirei fundo, parei pra olhar o lado de fora da janela. De lá, vinha uma moto. O rapaz usava uma jaqueta preta com detalhes fluorescentes, daqueles que não faziam a menor diferença durante o dia, ou naquela chuva. O protetor de seu capacete estava aberto, na certa para que ele pudesse enxergar alguma coisa. Do outro lado, um carro. Caminhonete dessas enormes, das que custam uma fortuna e das que sempre troco o nome de uma por outra e assim por diante. Passou rápido demais pelas poças d´agua de minha cidade impermeável – o senhor da moto levou um banho, e pude sentir a àgua, a lama da rua em contato direto com seu rosto, enquanto ele se concentrava para pilotar e não perder o equilíbrio. Vi, em câmera lenta, sua expressão de angústia. Quis buzinar, fazer sinal, xingar por ele o insensível veículo urbano que passou em poucos segundos por seu caminho. Quis dizer “estou te vendo!”. Quis dizer “solidarizo com você!”. Quis estender uma toalha e pedir desculpas pela desumanidade planetária. Quis dar-lhe um abraço. Segundos curtos para tudo isso, segundo curtos para qualquer coisa, foi o tempo em que o sinal abriu e nossas vidas se separaram. Acompanhei aqueles olhos, de quem nada podia fazer. Olhos impotentes. Como os meus, que seguiam agora também cheios de água. Água suja de sal e de culpa. Pois que um dia, de dentro do carro, me senti aborrecida com trânsito da cidade.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sobre a felicidade.

Minha família e amigos têm sido particularmente atenciosos comigo esses dias. Algo deliciosamente curioso de notar. Não sei se algo em mim infere carência e precisão, se me sentem só e temem por mim, se me vêem como parceira nesse movimento “aqui estou, por minha conta e risco, no mundo adulto”, se têm medo da própria solidão e estão um passo na minha frente em sua busca pela proximidade, se com esta busca aprenderam mais sobre o respeito e a responsabilidade nas relações, se me amam muito e por isso sentem minha falta e demonstram isso em atitudes. Se releram o pequeno príncipe recentemente. Por um lado, penso que é tudo isso junto (tirando a parte do pequeno príncipe, essa é outra divagação exclusiva). Por outro, tenho certeza: as razões pouco importam.

Nem sempre recebo ligações, mas as que faço têm sido cautelosamente retornadas. Os encontros marcados são todos encontrados; quando não, são desencontrados com igual cautela. Aqueles que se relacionam comigo me cativam. Relações preservadas e apreciadas, mesmo quando o contato é pouco, mesmo quando o tempo é curto... Pasmo de ver todo o acolhimento, atenção e respeito.

Penso quantas pessoas no planeta têm a chance de sentir o que eu estou sentindo agora. Penso quantas delas sabem reconhecer essa grandeza. Penso em quantas vezes ela passou despercebida por mim.

Em um único feriado senti tanto amor, e tão amada, abraçada, acolhida, que precisei para estes minutos aqui e dizer mais uma vez: obrigada.

Estou certa que nenhum dos seguintes protagonistas tem a noção do quanto é amado e importante. Espero que algum dia eu os faça saber. Hoje, o que desejo pra mim é notar, sempre, as coisas pequenas. Coisas pequenas que compõem o que me orgulho de chamar felicidade.


Sobre a gratidão.

A seguir, descrição detalhada de uma típica filha do vento sobre um maravilhoso feriado... (peço perdão, poucos e seletos leitores... foi preciso. É amor demais). Este é meu segundo texto de agradecimento, agora numa fase tão brilhante. E é igualmente grande. Não teve jeito.

Tive um almoço em família. Ao entrar no carro, o brilho nos olhinhos do meu irmão caçula gritava de amor. E era por mim...! Ai, que sensação é essa de ser amada. Mesmo as poucas palavras iniciais e a energia de meu pai me diziam que eu tinha feito falta.

Minha família. Essa louca e grande família, barulhenta, risonha, engraçada, apaixonante. Minha. Que linda, pensei. Todos tão estupidamente diferentes se movimentavam numa divertida dança de cadeiras, para cumprimentarem-se sem faltas até o fim do almoço. Para saber as novidades. Para tirar sarro do novo namorado. No novo corte de cabelo. Para comemorar o novo emprego. O novo carro. Para saber mais sobre a cirurgia. Para ouvir e falar. Para brindarem, degustar um prato especial, dividir a sobremesa. Que linda, pensei.

Sentada no banco de trás, por solicitação incisiva e carinhosa do pequeno, voltei pra casa alimentada.

Minha mãe, no andar dela, trabalhando no computador. Perguntou se eu tinha trazido algo de gostoso, mas eu não tinha trazido nada. Ela não ligou. Ela me ama mesmo assim. Ela sempre me ama, independente do que eu traga.

Ensaiei ir no cinema, liguei para dois ou três amigos. Uma trabalhava, outra ia num show, outro tinha outro encontro.

No computador, encontrei uma amiga que me ouviu com verdadeira atenção. Rimos de mim e da vida com verdadeira vontade. Rimos de minhas peculiaridades e eu fui feliz em transformar o que desejo mudar em risada. Em escutar criticas e conselhos com alegria. É tão difícil fazer isso. É preciso amor.

A amiga do show ligou insistindo pra eu ir. Preguiça boa de sair. Disse não sorrindo. Adorando o fato de poder dizer não e ser querida, adorando o fato de ela ter ligado. Do mesmo jeito, S. me chamou para dormir por lá. Preguiça boa de sair...

Ainda no computador, troquei três palavras com outra amiga. Ela se despediu com “vc é uma amiga maravilhosa”. Pensei em todos os dias que me senti egoísta e pouco companheira. Não costumo lembrar os dias em que fui maravilhosa. Mais uma vez, não me importavam as razões. Ela escreveu ma-ra-vi-lho-sa. Escreveu sozinha, por conta própria, com sua mãozinha de gente grande. Não, não, não vou deixar ninguém roubar meu mérito agora. E digo isso, obviamente, para mim mesma.

Prestes a acostumar com o silêncio, escuto o celular. O amigo do outro encontro. Queria saber da minha noite. “liguei pra saber o que ta rolando”. Homens, rs. Jeito engraçado de sentir saudade. Finalmente me orgulhei de ter entendido o recado.

Volto no computador. Uma patinha puxa minhas mãos teclado. Minha gata sabe que eu acho a maior graça desse gestinho dela de pedir carinho, ela sabe que não resisto. Espertinha... Ela ronrona quando eu riu e deita em cima de minha mão, provocando uma gostosa pausa nas palavras.

Antes de pegar no sono, uma mensagem de texto. Cau e eu tínhamos combinado um temaki, nada fechado, mas ela escreveu explicando que desistiu, mas “vamos marcar algo para o fds”. Doce. Sinto-me a rosa do pequeno príncipe. Sinto-me uma raposa feliz.

Sinto-me a dona da mais cheia árvore de natal.

Cada pedaço de mim experimenta alegria e amor. Sei que não plantei isso nos últimos dias, sei que em tempo recente minha energia estava quase sempre e quase toda comigo. Não é a colheita de um dia que abastece meu inverno. Esse jardim foi plantado em séculos. Rezo para ser digna dele. Rezo para saber mantê-lo. Rezo para sempre percebê-lo, para que ele não seja invisível ao meu coração.

E agradeço.
Não sei tudo que me trouxe até aqui. Mas aqui estou.

Durmo com a certeza: sou uma mulher abençoada.

domingo, 7 de junho de 2009

Sobre o ciúme.

Sentiu ciúmes dos livros, dos filmes (até daquele que se perdeu entre as estantes), sentiu ciúmes dos teclados do computador, letrinha por letrinha em contato constante com seus dedos, todos absorvendo seus cheiros, sendo úteis, estando perto.

Ciúme dos estranhos que cruzavam o caminho dele nas ruas, que podiam ver de perto seu corpo em movimento, ouvir sua voz, encontrar seus olhos.

Ciúme dos lençóis, das roupas, sapatos e meias. Ciúme da água que matou sua sede naquela tarde de sol, no hemisfério oposto.

Que dia mais cinza, pensou. Quando a distância vem enciumar meu coração doce e não tenho seus lábios para calar minhas loucuras.

Sobre o alívio.

Apenas por um minuto, me deixem gritar. Podem castrar os outros 1439 do meu dia, podem deixá-los, todos, reunidos sob comando do equilíbrio, da tranqüilidade, da minha paz de espírito e sanidade. Mas neste minuto, por favor, ninguém me segure, não me taxem louca, nem tentem me consolar. Não me considerem - ponto.

Quero apenas gritar, encher de ar os pulmões, transformar em som, em barulho, em puro grito, tudo que houver entre o útero e a garganta, entre os pés e a pineal.

Na privacidade moderna do meu carro em movimento, não consigo mais segurar. Grito. Os primeiros gritos são tímidos e é engraçado e frustrante. Ensaio de gritos, vindo de quem ainda desconhece seu potencial gritante. Respiro um pouco mais fundo. Não foi o bastante. Concentro-me. Vamos lá. Grito outra, outra, e mais outra vez. Grito alto, sem medo, movimentando toda e qualquer energia acumulada pelos cantos de meu corpo. Grito libertando minha alma, grito de raiva, de angústia, de frustração. Grito de medo, de solidão. Grito de desabafo.

Grito idéias repetidas, grito palavras não ditas, grito ações abortadas, gritos meus excessos, grito a minha falta de grito durante anos. Grito por um inteiro minuto.

Não é um grito de dor, pois há prazer, não é um grito de prazer, já que há dor. A dor e o prazer de gritar, do útero a garganta, dos pés a pineal.

Viro a esquina sem me dar conta de que esboço um sorriso. Duas curvas a frente, como que por milagre, aparece o sol. Lindo, iluminando o inverno, colorindo meu dia cinza de um minuto atrás. Respirei fundo. Agradeci com a alma, sorrindo. Estava de volta a minha paz.